A década de ouro começava. Depois da histérica inauguração do rock nacional nos anos anteriores, os Mutantes abrem o ano de 1970 lançando seu terceiro disco no espaço sideral da psicodelia. Eles não eram mais os mesmos desde seus primeiros álbuns, passaram por mudanças musicais e lisérgicas. Eram mutantes.

O Brasil seguia com seus governantes militares castrando qualquer tipo de manifestação artística, Caetano e Gil exilados na Inglaterra e a Tropicália enterrada mostrava seus resultados. Até os festivais de música já aceitavam as guitarras elétricas e começaram a imitar o deboche do trio. Mas os Mutantes não se acomodavam, trataram de lançar A divina comédia ou Ando meio desligado, o terceiro disco da vida do grupo. A capa do LP era incontestável: Rita, Arnaldo e Sérgio personificados à imagem da “Divina Comédia” de Dante Alighieri, ilustrada por Gustavo Doré. Com uma originalidade impecável, a foto teve como cenário o quintal da casa dos rapazes, onde de um buraco no jardim foi feita a cova em que Arnaldo surgia. A louca idéia foi dada pelo irmão inventor dos Baptista, Cláudio César. Já a contracapa foi o que mais “chocou” a sociedade moralista da época. Mostrava uma foto de Rita com os dois irmãos Baptista na cama. Um menage à trois hilariante, incluindo Dinho, o baterista da banda, vestido de nazista, ao lado do trio. Claro que dona Clarice, mãe dos irmãos, ficou pálida ao ver a cena em sua própria cama. Intencionalmente provocativo.

A Divina Comédia foi definitivamente uma evolução dos Mutantes. Eles estavam começando a andar sozinhos, não precisavam mais da ajuda dos Tropicalistas nem de mais ninguém para compor e gravar. Darwinamente o trio estava mais ROCK! Arnaldo largou o seu baixo e começou a se dedicar aos teclados, passando a bola para Arnolpho Lima Filho, o Liminha, hoje um aclamado produtor musical.

O LP começa delicadamente com a música que seria um grande sucesso, certamente a canção mais conhecida e mais romântica do grupo: Ando Meio Desligado. A história conta que a música surgiu enquanto Sérgio Dias soava uma melodia linda em sua guitarra e Rita ouvindo os acordes escreveu toda a letra, claro, chapados de cannabis. O disco segue com Quem tem medo de brincar de amor, que na verdade chamava-se Quem tem medo de fazer amor, claro, censurada. Ave Lúcifer e Desculpe Babe, faixas seguintes, mostravam o tanto da evolução do grupo, com um som mais cheio, mais denso, e efeitos especiais nunca trazidos antes para o Brasil.

Rita Lee foi quase que torturada pelos irmãos Arnaldo e Sérgio para poder cantar a música Meu refrigerador não funciona, a quinta faixa do disco. Eles queriam que ela soltasse a voz aos berros como fazia Janis Joplin, a musa dos dois irmãos. A música transformava uma simples frase numa canção excepcional, um blues rasgado e delirante.

O disco ainda contava com Hey Boy, um roquinho paulistano, meio “Rua Augusta”, Preciso urgentemente encontrar um amigo, de Roberto e Erasmo Carlos, a hilária versão para Chão de Estrelas, de Orestes Barbosa e Silvio Caldas, Jogo de Calçada, parceria de Arnaldo com Wandler Cunha e Ilton Oliveira, fechando com Haleluia, um rock-soul-gospel e Oh! Mulher Infiel (instrumental), ambas de autoria apenas de Arnaldo Baptista.

Quem nunca viajou ao passado ouvindo essa obra prima dos Mutantes, por favor, acometa-se. Nada como sentir na pele o que os anos 70 trouxeram para o mundo. É divino.

Canções:

Ando meio desligado
Quem tem medo de brincar de amor
Ave Lúcifer
Desculpe, babe
Meu refrigerador não funciona
Hey boy
Preciso urgentemente encontrar um amigo
Chão de estrelas
Jogo de calçada
Haleluia
Oh! Mulher Infiel

1 thought on “Discoteca: Mutantes, A divina comédia humana ou ando meio desligado (Polydor, 1970)

  1. Divina Comédia é o album de transição entre a musica experimental e o rock’n roll rasgado que seria a tonica de seus proximos lp. nele percebe-se elementos de suas diversas fases o que o torna um disco sem comparações na musica basileira.

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