Quantos tesouros podem existir em um simples cassete, esquecido no fundo de um armário, de uma gaveta? no caso da fita que deu origem ao CD “Renato Russo – O Trovador Solitário”, são vários: a intimidade de uma sessão acústica gravada no quarto de Renato Manfredini Jr. (1960-1996), em voz e violão, versos cortados das versões conhecidas pelo grande público, ou, no mínimo, a pista para o entendimento da explosão chamada Legião Urbana, poucos anos mais tarde.
O álbum, terceiro lançamento do selo Discobertas / Coqueiro Verde, abriga nove músicas, gravadas em 1982, e duas faixas-bônus: uma versão de “Que país é este”, datada de 1978 (provavelmente a primeira gravação do clássico que deu nome ao terceiro LP da Legião Urbana, em 1987), e um encontro inusitado entre Renato Russo e a cantora Cida Moreira, interpretando juntos a canção “Summertime”, de Gershwin e Heyward, no verão de 1984, pouco antes da Legião Urbana gravar seu primeiro disco.
O áudio, restaurado a partir da digitalização e masterização das velhas fitas, pode desagradar aos ouvidos mais exigentes, mas é justamente nas falhas provocadas pela ação implacável do tempo que se esconde mais um tesouro: a (gostosa) sensação de ouvir uma obra recuperada. Além da fascinante descoberta de como algumas canções foram inicialmente pensadas. “Eu sei”, que abria o lado B de “Que país é este?”, em 87, era “Entre 18 e 21”; do mesmo vinil, o “contrabando” que o primo Pablo trazia da Bolívia para João de Santo Cristo revender na Planaltina de “Faroeste caboclo” era, na verdade, cocaína.

Mas a maior quantidade de versos modificados está na estória de “Eduardo e Mônica”, onde é possível constatar como o corte feito na versão lançada em 1986 deixou a narrativa um tanto perdida. Na gravação presente do LP “Dois”, Eduardo e Mônica voltavam pra Brasília, vindos de um local desconhecido. Na versão agora apresentada, o trajeto está completo: o casal sai de Brasília, passa pela Bahia, por Cristalina, em Goiás, por Sampaio, no Tocantis, vai para o Rio de Janeiro, e finalmente retorna ao Lago Norte.
Entre as outras surpresas anunciadas pelo “locutor da Rádio Brasília”, cantadas pelo Trovador e seu “violão desafinado”, estão “Boomerang Blues” – que Zélia Duncan recriou em 2002, no CD “Sortimento vivo” – “Veraneio vascaína”, parceria de Renato Russo com Fê Lemos que se tornou um sucesso com o Capital Inicial, e as inéditas “Anúncio de refrigerante” e “Marcianos invadem a Terra”. O encarte traz ainda fotos de Renato Manfredini Jr. ainda criança, entre desenhos, trechos das letras datilografas e frases anotadas pelo músico, como “Anarkia é caos construtivo”, “A organização do desespero” e “Vocês são joia”.
Com a proximidade do 12º aniversário da morte de Renato Russo, no próximo dia 11 de outubro, “O Trovador Solitário” – codinome adotado por Renato após o fim do grupo de punk rock Aborto Elétrico – não deixa de ser mais uma homenagem póstuma ao poeta que, solitário ou acompanhado, retratou em forma de canção a sua geração e as injustiças de um país, marcado pela corrupção que, infelizmente, não desapareceu.
Para alguns, “Renato Russo – O Trovador Solitário” pode soar como um dos versos de um outro sucesso da Legião: “ôôô, é sempre mais do mesmo…”. Mas, ao ouvir o CD, chega-se a conclusão de como sua presença nos faz falta, e como novas gravações sempre são bem-vindas. Aí, a frase se completa: “…não era isso que você queria ouvir?”.